Medo

OLHEM… vejam o quão bom e belo é tudo isto. Uma multidão feliz ocupa as ruas vazias. Nas casas, as luzes coloridas e piscantes denunciam, no horário nobre, famílias inteiras almejando a vida que lhes brilham aos olhos secos da alma. Uma novela é bem mais real na mente de quem a assiste do que toda a vida que cerca o mundo lá fora. E mesmo que tal programação acabe, ainda assim o efeito continua vívido e veloz como o sangue que corre pelas artérias. Mas a vida real também é uma novela, porém, nela não somos nem diretores nem atores, somos algo menos que atores. Enquanto houver um drama para nos entreter, meros espectadores de nós mesmos é tudo o que continuaremos sendo.

Olhem… olhem todos. Algumas pessoas se entristecem. Deve ser o efeito da desintoxicação mental. O fim da letargia programada se aproxima e a maior evidência é esta tristeza estampada em seus rostos. Observem-nas. Percebam suas interrogações ao redor delas. Há dúvidas? Não… não há dúvida alguma nelas. O que há é uma certeza mais sólida do que diamante. Elas sabem; sempre souberam que além de seus passos o desconhecido as aguarda. Suas interrogações são desculpas de desentendidos. Não são mais as mesmas crianças curiosas de antes; são adultos, agora. E como todo adulto, são pessoas medrosas. Nas suas infâncias alguém certamente as doutrinaram com o medo da morte, de Deus e, dos seus próprios semelhantes. Engraçado este medo do que não se pode ver. Não é mesmo? Vocês conseguem explicar isto? Medo da morte, medo de Deus, medo dos seus. Somos todos unidades carbono e logo nossos corpos irão se deteriorar como toda e qualquer matéria orgânica. Ué! Eles não aprenderam isto nas escolas? Nas escolas não ensinam mais o científico; nas escolas ensinam belo, o maravilhoso, o saboroso… repetem dia após dia que os nossos corpos são constituídos, em setenta por cento, de água, e assim não nos resta espaço algum para compreendermos do que é feito os outros trinta por cento. Nos roubam a compreensão da nossa verdadeira estrutura; nos afastam da compreensão da morte. Dizem que o termo “morte” é ruim. Dizem que Deus nos dá a vida e nos tira quando bem entender. Deus sopra a vida e logo nos apresenta à morte? Como não temer um Deus assim, que a qualquer instante nos coloca frente a ela, a morte? Se a morte tivesse sido apresentada, à essas pessoas, de forma científica, compreenderiam a natureza divina e Deus não seria tão dual assim, com seus amores e rancores. Mas elas se sentem completamente cômodas dizendo que a morte é um fenômeno incompreensível, que Deus não pode ser compreendido, que milagres e sorte existem de verdade. Parece-me que quando os sonhos novelescos dessas pessoas sofrem qualquer tipo de ameaça que possam despertá-las, elas correm em busca de um paliativo. Raras são as que aceitam de forma natural o despertar. Mas eu as compreendo, e elas próprias se compreendem. Pensam que estarão sozinhas fora do sistema. Não sabem que o “sozinho”, na verdade, se chama individualismo. Talvez até saibam, e talvez seja isso o que lhes coloca tanto medo: a ideia de ter de caminhar na solidão. Elas não foram treinadas para isso. Desde cedo aprenderam a ilusão do trabalho em equipe. Não existe essa coisa de trabalho em equipe; um sempre dará mais, ou menos, do que o outro. Se nas escolas aprendêssemos o individualismo, cada qual daria o seu melhor, sozinho ou num enorme grupo. Não haveria ninguém se escorando no outro. Quando nos afastamos da vida fantasiosa começamos a sentir toda a dor da abstinência da loucura planejada. E dói de verdade. A alma parece sangrar, de verdade, os horrores de nós mesmos. E a poça densa que se forma no chão brilha opacamente mas não impede o reflexo daquilo que somos de verdade. Elas dizem: “Não! Eu não quero me olhar! Não suporto-me, e ninguém deve saber disso!”. Ora! O correto, o natural de Deus, seria que essas pessoas se auto-tratassem. Mas pra que perder tempo com isto se há profissionais habilitados, e com vasta experiência? Tudo isso é maravilhoso. Há um sistema completo que nos ajuda a fugirmos de nós mesmos. Claro que não é de graça. De graça nem injeção na testa, como diria minha finada mãe.

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Olhem só mais uma vez. Observem aqueles rostos fingindo a felicidade mais usual do momento e seus corpos, não mais eretos, buscando de forma cega por uma involução impossível. São todos dependentes químicos; todos drogados, e nem precisam fazer o uso de drogas ilícitas ou medicamentos alopáticos, que são as drogas lícitas comercializadas por traficantes formais em quase todas as esquinas. Basta se permitirem à influência, boa ou ruim, não importa qual, pois não há diferença alguma. Basta que dêem ouvidos a outrem para se tornarem, quimicamente, drogados. Sim… quimicamente, pois toda e qualquer informação que absorve do mundo exterior, causa-lhes, em seus corpos, através das glândulas endócrinas, algum revertério químico capaz de arrancar suas personalidades. A pior influência é aquela que sempre foi permitida pelos nossos representantes… ou seja, por nós mesmos. Vemos o mal e somos atraídos por ele porque foi criado por nós através do nosso “sim”. Se hoje há mais drogarias vendendo drogas apelidadas de remédios do que padarias vendendo alimentos capazes de reunir a família em torno de uma mesa pela manhã, é porque há quem as mantém.

Olhem… por uma última vez, eu lhes peço. São cadáveres que perambulam sem saberem disso, e somos tão culpados deles serem assim quanto quem lhes ensinaram que, a transformação do Ser, em qualquer estágio, se chama “morte”, e que é ruim. Deve ser por isso que temem e evitam suas próprias transformações. A culpa nos cabe porque vemos e nada fazemos; porque nos afastamos e nos isolamos sempre que eles ladram a fim de defenderem esse sistema cruel e domativo. Vocês vêem? Conseguem enxergar como somos péssimos para nós mesmos, privando a nós mesmos da liberdade que tanto sonhamos para a humanidade? Já é tempo de escancararmos a verdade oculta; aquela que está em todos os cantos, mas coberta com véus coloridos como os confetes deliciosos feitos para entreter crianças. A verdadeira vida é uma novela que almejamos desde sempre, mas ainda estamos bem longe de sermos seus atores ou seus diretores. Somos meros espectadores, e assim continuaremos enquanto não nos levantarmos de nossas poltronas macias e nos dirigirmos até o palco onde reina a ignorância. Existe um outro Show à ser dado. Chega de aplaudir apresentações de quinta categoria. Todos nós merecemos um realismo total neste mundo onde, quem pensa diferente sempre vira herege!

Clique Aqui para ouvir a narração desta crônica.

David Mendes
escritor

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2 comentários em “Medo

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  1. Texto muito bom!! A alienação novelesca ofuscando a realidade; a morte sendo ignorada como um ciclo natural e sendo depositada sobre a “vontade de Deus” e a necessidade de obter respostas para questões internas, vindas de outra pessoa, capaz apenas de arrumar soluções paleativas: remédios!

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